O uso de “fascista” como xingamento tem uma longa história no mundo inteiro, muitas vezes levando a uma banalização do termo. Mas é importante entender o que tem de essencial no fascismo, não só por razões científicas, para não nos confundirmos, mas sobretudo para condicionar uma resposta adequada à ameaça neofascista.
Já vimos o Berlusconi “fascista”, que levou a esquerda e os liberais italianos a unirem-se sob o guarda-chuva de uma suposta nova “resistência”, nos anos 2000. Foi fútil; o Berlusconi permaneceu sobre o palco nacional, eventualmente tornando-se uma parte chave da “resistência antipopulista”(!). Temos, também, o Trump “fascista”, esse apelido permitindo aos setores mais elitizados estadunidenses a disfarçarem-se de “Resistência” e, por conseguinte, a assumirem o nobre papel de antifascismo.
Deveríamos, então, mantermo-nos céticos e frugais no uso do termo. Por isso, a intervenção de Pablo Ortellado em sua coluna na Folha de S.Paulo de ontem (25 de setembro), sobre a questão do “fascismo” do Bolsonaro, é muito bem-vinda.
Ortellado foi explícito: Bolsonaro é muitas coisas, mas não é fascista. O raciocínio do autor é que, pelo candidato do Partido Social Liberal (olhem, tem muitas coisas mal nomeadas no mundo político) não ser nacionalista, não é fascista. A lógica é suspeita, o que pretendo explicar a seguir, mas foi uma intervenção legítima, a ser debatida, e não denunciada.
Mas partes da esquerda reagiram de modo histérico, achando no texto de Ortellado um jeito de amenizar a ameaça que apresenta o Bolsonaro. “Que catso é isso? Pelamor… Vc está se perdendo no seu intelectualismo universitário…”, comentou um. Outro hiperbolizou: “o Pablo Ortellado aderiu ao fascismo”. Um terceiro achou que o texto “justifica a legitimidade democrática de um candidato que do alto do palanque propôs metralhar os inimigos políticos”. Como assim?
Muitos viram o enquadramento de Bolsonaro como “guerreiro cultural”, também, como jeito de legitimá-lo. Por quê? Guerra cultural também pode matar. Vide os acontecimentos de Charlottesville nos EUA o ano passado. Tratou-se de um evento violento; uma ativista foi morta, atropelada. Isso é terrorismo. Contudo, não necessariamente saiu da lógica das “culture wars”. Onde o Ortellado está errado é em achar no surgimento do Bolsonarismo – que, de algum modo, pode ser visto como o antipetismo radicalizado – uma guerra cultural. Não é que esse fenômeno não exista no Brasil, mas não é o fator predominante. Nos EUA, ele continua muito mais importante. Retornaremos a essa questão.
Em reação às críticas, Ortellado ironizou: “Está proibido analisar. Só podemos gritar palavras de ordem.” Simpatizo. Porém, como realçaram alguns interlocutores, existem críticas válidas, apesar de Ortellado ter se queixado, com certa justiça, de que, “por aqui só recebi agressões”. Os comentários que advertiram das “implicações graves” do texto estão certos. A análise condiciona nossa resposta; há implicações práticas. Mas isso vai além da questão da “gravidade” da situação ou da ameaça que apresenta o Bolsonaro. Tanto Ortellado quanto seus críticos estão de acordo. É gravíssimo; a ameaça está presente e ela é assustadora. A questão é outra: os conceitos que mobilizamos na análise informam como reagimos. E, sim, o texto de Ortellado tem um problema grave: a ausência do papel de classe. Tal ausência traria, por consequência, respostas políticas equivocadas.
Fundamentalmente, o argumento de Ortellado baseia-se em dois pontos: o Bolsonaro não é nacionalista; e ele é uma criação das guerras culturais. Em relação ao primeiro, importante dizer que o nacionalismo é, sim, componente essencial do conceito de fascismo. Ortellado destaca o fato de que Bolsonaro não é nacionalista econômico. Mas o nacionalismo e o corporativismo dos anos 1920 e 1930 eram aspectos conjunturais do fascismo histórico, eram respostas às crises da época no centro global. O modo de gestão, ou regime, econômico, não é um fator essencial da ideologia fascista. O que importa nesse primeiro ponto é a questão de dominação de classe. Nos anos 1930, o fascismo e o nazismo funcionaram como formas (ultra)políticas de salvar o sistema capitalista. Em nossos tempos, o fascismo pode adotar meios de gestão econômica diferentes, tal um neoliberalismo extremo. Aliás, há correntes históricas que indicariam afinidades entre os dois, tanto no eixo Friedman-Pinochet, quanto na história do integralismo brasileiro.
O nacionalismo de Bolsonaro não inere em suas propostas econômicas, nem em ataques a inimigos externos, mas na aniquilação de inimigos internos, como destacou Esther Solano em resposta ao artigo original. Bolsonaro visa uma “nação patriarcal, branca, heteronormativa, onde o inimigo é o negro periférico, a feminista, o político de esquerda, o professor”; tudo isso em prol de uma nação hierárquica e homogênica. É nisso que se exprime o antiliberalismo de Bolsonaro, fator essencial do fascismo, e não na macroeconomia.
Mas qual a diferença entre esse nacionalismo antiliberal e a ideologia do campo conservador nas guerras culturais? O que torna Bolsonaro “um soldado das guerras culturais”, segundo Ortellado? É que ele põe “no centro do seu discurso temas morais como a sexualização da infância, a escola sem partido, o porte de armas, a punição aos criminosos e o antifeminismo”. Porém, há dois fatores que diferenciam o Bolsonarismo do guerreiro conservador cultural. Primeiramente, temos os métodos violentos que distinguem o fascismo Bolsonarista do conservadorismo, apesar de ambos valorizarem um conceito integralista de nação. O Bolsonarismo prega a violência do Estado tanto quanto a violência não governamental (vide as milícias, o assassinato da Marielle, os tiros na caravana do Lula).
Segundo, há a questão de classe. O antipluralismo ou antiliberalismo de Bolsonaro não é apenas uma visão ideológica da sociedade que se mete em competição com o liberalismo. Ele é um modo de esmagar o povo, de cima para baixo. O fator distintivo das guerras culturais é que se desenrolam no plano cultural. O lado conservador é composto tanto por elites de estados interioranos, tal como grandes fazendeiros, quanto por trabalhadores precarizados; o campo liberal, tanto por elites culturais urbanas – por exemplo, um dono de galeria de arte –, quanto por operários industriais. É na cultura que as distinções de classe se dissolvem. Vide o caso norte-americano dos últimos 30 anos e a “divisão” entre Democratas (partido do patrão e da guerra imperialista) e Republicanos (partido do patrão e da guerra imperialista).
Apesar de o Bolsonarismo se fortalecer em parte pela nova guerra cultural que surgiu nos últimos anos no Brasil, não é o núcleo dessa ideologia, do neofascismo. O Bolsonarismo como antipetismo radicalizado – com forte aderência de setores da classe média alta e da elite – visa o esmagamento da classe trabalhadora; é um modo de tirar o capital brasileiro da crise por meio de uma radicalização social.
Aqui se vê o equívoco de Ortellado. Ao enquadrar Bolsonaro como guerreiro cultural, focando na opressão de uma coleção de identidades (negros, homossexuais, mulheres etc.) e destacando a posição relativa destes grupos, Ortellado transporta o debate ao plano cultural. Sim, é verdade que mulheres negras periféricas são aquelas que mais terão a perder com um governo Bolsonaro. Mas o Bolsonaro também representa um ataque à classe trabalhadora inteira, à maioria da população brasileira. Aliás, o neoliberalismo do Bolsonaro é um jeito de essa ameaça ser realizada. A compreensão desse ponto condicionaria a nossa resposta política.
Que o Bolsonaro e o Bolsonarismo apresentem aspectos diferentes do fascismo europeu do período entreguerras não é suficiente para não merecer o rótulo de fascista. Como alertou Henrique Carneiro em outra resposta a Ortellado, “o fascismo estrito senso é algo bem diferente dos híbridos contemporâneos neofascistas”. Continuou: “A misoginia, a homofobia, o racismo, o horror à cultura, o anti-intelectualismo e o irracionalismo são marcas centrais desse híbrido ideológico pouco consistente e orgânico, mas não são o que definem o seu programa econômico e político que consiste em aplicar o mais brutal plano antissocial pelos meios mais violentos, impiedosos e repressivos”.
O núcleo do Bolsonarismo é o ódio ao trabalhador organizado, aos sindicatos, que hoje em dia – apesar da ausência de uma ameaça de revolução socialista – é incarnada no PT e, sobretudo, na imagem de Lula. O fascismo é, no fundo, uma solução radical da burguesia que consiste em não só derrotar, mas também aniquilar a classe trabalhadora; é um recurso à guerra civil. Sim, o neofascismo é uma criação sincrética e pouco consistente, mas existe um núcleo ideológico que o define: o alistamento da classe média, para satisfazer o interesse final do capital, por um partido organizado, que idolatra a violência, numa guerra pela dominação absoluta do povo.
O foco de alguns comentaristas no ódio, no antipluralismo, na presença ou na ausência de nacionalismo econômico – esses são fatores periféricos ao considerar a questão da ideologia neofascista. Como destacou Adrian Pablo Fanjul, no Facebook, existiram fenômenos em países dependentes que já “se assemelharam ao fascismo no essencial (isto é, em propugnar o combate aos movimentos populares e sociais com métodos de guerra civil) [mas que] tiveram esse ‘defeito de fábrica’ em relação aos fascismos dos países europeus centrais” – ou seja, a ausência de nacionalismo econômico.
Concordando, então, que aspectos do Bolsonarismo se assemelham ao neofascismo – que por este objeto ideológico pode entender-se um “neofascismo em desenvolvimento”, cujos pilares ainda não se solidificaram – restam duas perguntas quanto ao status do Bolsonaro como fascista.
Primeiro, por qual razão buscar a aniquilação da classe trabalhadora organizada? Nos anos 1920 houve a Revolução Russa, a Revolução Alemã, uma classe trabalhadora organizada sob a bandeira do Comunismo; no Chile houve o governo Allende, provavelmente a mais radical tentativa socialista já arriscada por meios eleitorais. E no nosso Brasil? Houve o reformismo suave do PT, que já, aliás, foi golpeado. Então, se, como disse Walter Benjamin, “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”, onde foi que houve a revolução fracassada? Slavoj Zizek tem tratado dessa pergunta em relação aos neofascismos da Europa oriental e ao surgimento de populismos xenofóbicos no Ocidente. Zizek defende a conceitualização de Benjamin com a ideia da revolução ausente: deveria ter havido uma revolução, e essa ausência abriu um vazio. Basta ver a situação desastrosa do pós-comunismo ou, especialmente, a estagnação e declínio pós-crise na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Talvez essa ideia possa nos orientar no Brasil. A crise aqui, sobretudo a crise política, das instituições regentes, foi uma oportunidade de revolução (pelo menos uma revolução política). O vácuo de autoridade deixado pelas instituições fracassadas da 6a República – e, também, por uma esquerda enfraquecida e fragmentada, incapaz de assumir a autoridade – está sendo enchido pelo Bolsonarismo.
A segunda pergunta pertence ao problema do veículo político. Muitos apoiadores do Bolsonaro evidenciam temas de guerra cultural, de conservadorismo moral ou religioso, um fenômeno ao qual atestam as importantíssimas pesquisas de Pablo Ortellado. Esses não são fascistas. Ademais, o partido ao qual ele se filiou, tão recentemente, é fraco e desorganizado, e o grupo ao seu redor é ideologicamente pouco coerente. Porém, há um fator muito assustador, que é a presença de militares de altíssimo escalão cercando o Bolsonaro. É isso, muito mais que a “mitação” nas redes sociais, que tem a capacidade de realizar o neofascismo.
A resistência, então, tem de ser ampla, unindo brasileiros. E unindo-os não apenas como representantes de identidades desfavorecidas ou ameaçadas, mas como uma massa, prestes a defender a autonomia do povo.